30.8.09

Quebra-cabeça

...fechado
não vou esquecer
eu te devoro
descaradamente
e em partes também
até ficar completo outra vez
aí...
desmembrarei tudo de novo
quebra-cabeça, sabe???
mexe
mexe
mexe
até que...
deu!
mistura e ...
vamos de novo
te devoro.

26.8.09

A melhor amiga do despertador

Logo ao fechar a porta um vácuo se fez.
Estranho. Não deve ser nada, pensou.
A mochila antes agarrada às costas escorregou pelo braço direito.
Os sapatos ficaram apoiados um ao outro bem perto da chave que caiu no chão.
Ao olhar pro sofá ela estava lá como uma manta de adorno estatelada, de pernas abertas e com um sorriso de canto de boca.
Atônito tentou contestar.
Impossível.
Vez que sempre ela dava as caras. Nunca limpava os pés no capacho da entrada, mexia no armário da cozinha, derrubava suco no canto da almofada e deixava o chuveiro ligado por horas.
Para deitar no sofá era preciso passar por cima das longas pernas apoiadas na mesa de centro. O cheiro forte fazia com a mão fosse várias vezes ao nariz. Ela nem ligava.
Tinha ainda, predileção por canais de televisão pares e se abancava do controle remoto descaradamente.
Na cozinha seus rastros eram notórios. Nem mesmo apertar a torneira para não vazar água ela era capaz.
Como sempre deixava o sabonete cair ele se acabava, fazendo com que os banhos fossem com água morna ou no máximo com xampu.
Espaçosa, a preguiça, sempre ficava com a maior parte da coberta e tinha mania de dormir na diagonal.
Esperta, era amiga íntima do despertador.

23.8.09

Panela de pressão


Ângela exauri-se de expor a cara na janela todos os dias e de lá inferir sobre os passantes, os vizinhos e os inimigos. Resolvera se desfazer da velha companheira: lixo seria o destino da almofadinha bordada que servira de suporte para os seus cotovelos esbranquiçados.

Com a tramela fechada foi obrigada a desabotoar o vestido puído e olhar para o que havia sido alinhavado. Seus olhos estavam perdidos, há tempo não tomavam a direção tão bruscamente imposta.
Naquela manhã o aroma do café não dobrou a esquina. O grito de Cida chamando pela vizinha podia ser ouvido há passos dali. Ângela estava deliberada: nada de feira, nada de folhear o catálogo de compras, nada de separar as partes constituintes de um todo e tão pouco falar o mal pelo mal.


Como não se passou da hora de almoçar, sorvera as primeiras lágrimas ao se lembrar que com seu comento a respeito do empréstimo da panela de pressão, Zete, teve que sair às pressas da rua. Sim! Falara em alto e bom tom na janela, na fila da venda e no encontro de casais na igreja que achara um absurdo alguém pedir uma panela emprestada, ainda mais de pressão. Mesmo não concordando, o Conselho de Vizinhas optara por expulsar Zete.


Sem fome e embriagada pelo cheiro de bolo de banana no forno que vazava pela porta, não conseguiu relutar com sua memória que trouxera Cibele, a vizinha da frente: prestativa, sorridente e boleira de mão cheia. O nó no peito se tornava maior à medida que se lembrava que não a tragava. O simples arrastar do chinelinho de pelúcia no taco encerado era capaz de amotinar os sentimentos mais tranqüilos.

Cibele produzia em Ângela uma irritabilidade que a desconcertava e fazia seu coração triplicar os batimentos. Não era só a lerdeza da vizinha de porta em bater os ovos, lavar as roupas e arrumar a casa que a tirava do chão, às vezes, o sorriso bonito dela a deixava com raiva, isso: raiva! Ângela chorou como se tivesse perdido o dedo anular. Tentou conter as próximas lágrimas que teimavam em descer. Chorou! Cibele não supunha de tamanho sentimento. Para ela, Ângela era pau pra toda obra, capaz de dividir tudo, até pregador de roupas.


A noite trouxe a tia Marinalva. Dividiam uma casa amarela na rua de nome Azul. Tentando esconder os olhos vermelhos colocou mais cebola na panela. A tia não falava muito. Nada falou. Ângela comeu sopa sem pão e como de costume colocou cabelos no que sobrara, pois mesmo cada uma fazendo sua comida, tia Marinalva, sempre aceitava o que a sobrinha ofertava por educação. As duas se suportavam, já estava sendo assim por anos.
Mas o que Ângela realmente não tolerava era a risada da tia que ecoava constantemente pelos cômodos vazios da casa. Quando Marinalva sorria levava a cabeça e parte das costas para trás, o peito grande ficava enorme e para completar sempre dava as duas palminhas antes finalizar o riso. Era assim sempre que ouvia uma piada, assistia à televisão ou quando ria de si mesma e de seus esquecimentos costumeiros. Ângela, sempre que ouvia essas risadas pensava que estava jogando óleo quente na cara da tia.


Trezentas e oitenta e duas voltas para esquerda e duzentas e sessenta e seis para direita foi o que Ângela conseguiu contar antes de dormir. Como sempre teve dúvidas em relação à verdadeira ingenuidade dos carneiros, evitava trazê-los para sua cama. O sono foi rápido como suas últimas decisões. Sentada na cama enumerou mais uns nove desafetos gratuitos. Entre eles o padeiro Jucelir e sua mania de fazer pausas entres os diálogos; a Ivete e sua compulsão por compras mesmo estando desempregada; a prima Tina habituada a gozar as férias na casa amarela com sua mania de deixar copos pelos móveis; o pai que faleceu longe e cedo demais; São Judas Tadeus por sua morosidade ante as causas urgentes; Shirlei por usar terças, quintas e sábados o mesmo vestido turquesa e segundas, quartas e sextas, o florido de fundo cinza de sempre; o filho da Clotilde por escutar música alta capaz de ser ouvida no inferno, local esse que Ângela deseja ao rapaz; a moça da loja de armarinho por ter um dedo grosso e cutículas exageradas e ela. Sim, Ângela criara um desafeto consigo mesma. Completamente no ódio dormiu.


Quando acordou, mau se vestiu e foi logo abrir a janela. Em cima da almofadinha catada do lixo, colocou a panela de pressão com uma placa que podia ser lida: empresta-se!

16.8.09

Quem sabe um dia...

Quem sabe um dia eu...
me case.
deixe de gostar do cheiro de pano de chão molhado.
não tenha trilha sonora pra mais nada.
saiba o que fazer com minha liberdade.
coma salada de xuxu com melão.
aceite cabelo na pia.
misture queijo com amora.
goste de Playstation.
retire a dor do próximo com um simples sopro.
demore mais.
vire um músico de rua.
deixe de me adoçar com trufas.
passe dias com pernas entrelaçadas.
me despreocupe.
leia Caio Fernando Abreu depois do sexo.
acampe.
ache a palavra certa.
goste de marrom.
beba até cair e não vomite.
seja menos reticencioso.
convide Deus pra tomar uma cerveja comigo o Felipe e a Vanessa no Entreato.
me masturbe menos.
entenda o que tem de interessante no meu celular.
tenha mais de uma alma.
more na Tailândia.
ame sem pensar.
me torne um super-herói.
vire uma rua sem saída.
venda minha vida num Mercado das Pulgas.
Quem sabe um dia...

10.8.09

Padeço de vontade

Vontade de parar de dormir.
Necessidade fisiológica de grudar-me em braços sinceros.


Algo me incita a chorar.
Uma disposição compulsiva ao amor despretensioso.



Por capricho já tenho até uma trilha para embalar as solas.
Anseio sonhar caminhando na rua.



Aspiro conversas frívolas.
Cobiço poesia-amor-poesia.



Padeço.
Seria eu um bom partido?

3.8.09

Procura-se ilusões

Luiza decidiu sair de casa a procura de ilusões. Resolvera enganar os sentidos e interpretar tudo da forma que achara melhor. Nada de certezas, nada de preciso.


Logo na portaria do prédio se deparou com o senhor Frederico, um aposentado palmeirense, fã de Wagner e Demônios da Garoa que, às vezes, era pego por ela chorando na escadaria entre o terceiro e o quarto andar. Naquele dia ela o transformou em Fred. Livre das pulsões suscetíveis que provocavam sentimentos de culpa, ele correu pro baile da Associação. Lá, com o salão cheio, rodopiou de alegria. O calor do suor que caia em sua boca refrescava uma vontade antes engavetada. Para ela, o Fred era um pé-de-valsa.


No cafezinho durante um intervalo no trabalho, Luiza, flechou sua colega Ana Ermínia. Ficara ali fitando-a por alguns minutos até que decidira que ela não deveria mais usar calças azuis e camisas rosa com sapatos caramelos. Também a trocou de setor. Sim, naquela quarta feira nublada, Aninha, se colocaria num vestido de renda preto, deixaria suas colegas da contabilidade e assim seria absolvida da grande inquietação ante a noção de um perigo imaginário. Depois se jogaria na gestão de risco.


Almoçando sozinha no buffet cheio da esquina, Luiza, resolvera ser vegetariana e que o seu sexo amigo entraria pela porta sorrindo. Cansada de postais não enviados, ligações não completadas e cervejas que esquentam antes do tempo; aceitara o carteiro como o mensageiro do amor. Até a hora da volta ao trabalho não se importaria em ser feliz para sempre, tão pouco, filhos, praia e sogra. Apenas a volúpia.


Voltando pra casa, passou numa banca de revista. Pediu licença ao senhor Vicente e decidiu que as notícias naquele dia seriam diferentes. Nada de guerras, aviões caindo, gripes animalecas ou casamentos acabados. Nas capas das revistas semanais Luiza, colocou a foto do amigo perdido há anos nos trilhos da vida, o reencontro iria parar na retrospectiva de final de ano. Já nos diários, publicou declarações públicas de afeto.


Antes de dormir resolvera que teria bons sonhos e que se, por ventura, acordasse no meio deles, voltaria para o mesmo e de onde parou. Para o dia seguinte já estava decidida: só sairia de casa depois de ler o horóscopo.