7.12.09

De cara com a Vida

Wando era daqueles que comia mortadela frita com batida de banana e dificilmente pensava na Vida. Até que um dia, entre um copo e outro de cachaça, puxou uma cadeira pra ela. Resolveu naquele momento colocar as cartas na mesa. Como nunca foi muito fã do Sagrado Coração de Jesus, evitou intermediários e teve dois dedos de prosa com a própria.
- Eu sou Wando Gilberto Marfim, moro logo ali depois da curva e trabalho depois da descida da marginal, à esquerda.
- Eu sei, Wando. Foi eu quem lhe criou.
-Você tem orgulho disso?
-Posso dizer que sim. Há um tempo estava meio em crise com minhas criações, aí me reuni com o Secretário Geral e Porta-voz oficial de Deus e alinhamos algumas coisas pra facilitar o processo, sabe?
- Tipo o que?
- Muitas coisas, mas vou tentar ser objetiva. Pessoas românticas, por exemplo, desde que criei a Cinderela fiz vários lotes de românticos, com isso tive que criar os filmes, as novelas, as revistas de celebridades e sem falar na Torre Eiffel. A Cinderela, certamente, foi uma das minhas maiores burradas. Os românticos, em determinados momentos, atrapalham o bom andamentos das coisas, eles esquecem de serem práticos.
- Mas por que criaste o amor, então?
- Wando não confunda oras com bolas. Amor é diferente de romantismo. Tão pouco entrarei nesse assunto para não me estender.
- Tá, e o que mais o que foi decidido?
- Tivemos uma grande discussão quando o enviado Dele exigiu que parasse de criar pessoas sexista. Fiquei puta da cara! Como assim? Deu um trabalhão inventar o Freud e todas aquelas teorias e de uma hora pra outra teria que acabar com o sexo e suas conseqüências, que isso! Depois de muitas farpas ficou determinado que, para o próximo ano, sairá um lote grande de pessoas dispostas e desprovidas de qualquer preconceito e romantismo, adepta ao sexo pelo sexo.
- Mais isso já acontece, olhe ali na esquina.
- Não falo de negócios sexuais e sim de pessoas adultas que se encontram, por exemplo, na rua e dizem uma pra outra: gostei de você! Vamos transar?
- Meu Deus!
- Não diga isso, Wando. Quando te fiz o objetivo era que fosses ateu. E agora deu pra colocar o nome desse Cara nas conversas, que mania mais humana. Será que isso é defeito em umas das minhas máquinas? Vou anotar e passar pra assistência técnica.
- Sabes que não sou muito acostumado a pensar em você. Acho um saco quando lá no trabalho vou fumar e encontro alguém que diz: estava aqui pensando na Vida. Não tem como desfazer essa ligação megalomaníaca?
- Claro que não, Wando! Vocês dependem de mim, sou fotossíntese na veia.
- Esse negócio de dependência é desnecessário, Vida. Gerou vinculações em demasia. Quer ver? Dependemos de você, de Deus, do amor, de comida, de sexo bom, de dinheiro, de praia lotada e com Sol, de aplauso, de cafuné, de olhos nos olhos...
- Eu sei, já chega! Fiz um curso semana passada e comecei a estudar uma nova metodologia que seja capaz de desvincular um pouco as coisas. Quando produzi a dependência estava de caso, com o coração preenchido e acabei projetando isso em volta.
- Mais me diz... você vem sempre aqui?
- Pra ser sincera, Wando, esse não é o tipo de lugar que tenho predileção. Mas o dono do bar decidiu “dar um pouco de Vida ao ambiente”, como vocês adoram dizer. Aí já viu, né? Tenho que ficar por aqui até tudo andar sozinho. Falando nisso vou nessa. O dever me chama. Bom falar contigo.
- Ok, Vida! Vou tomar a saideira e já vou também. Vamos marcar de beber umas juntos, ou um forrózinho quem sabe?
- Iria adorar, Wando. Ando precisando relaxar um pouco, cuidar mais da minha Vida.