28.2.10

Prato do dia: Surpresa


Faz-me uma surpresa. Chegue outra vez sem avisar. Pegue o jornal e sorria-me pela esquerda. Se quiseres te ajudo com as palavras cruzadas.
Limpei tua mesa com água de cheiro. Queria ter deixado um poema. Contive-me.
Hoje, o prato do dia é Picadinho de Carne com Cenouras, sugestão minha a cozinheira. Pensei que talvez você gostasse.
Faz-me uma surpresa, vai! Chegue pé ante pé e pegue-me lustrando as louças. Meu coração anda precisando de sustos.
Aproveita  e revela-me o que te tira do chão, o que te adoça a boca e diga-me que estas só.
Perguntar se prefere Almodóvar ou Tarantino, praia ou serra, dormir tarde ou acordar cedo; pode ser demasiado evasivo. Mas quero te invadir. Ok! Melhor restringir-me ao: açúcar ou adoçante?
Faz-me uma surpresa, deixe seu nome escrito em um guardanapo sujo de seus vestígios e volte sempre!

22.2.10

A Teoria do Achismo


Martinha se achava a tal. Sabe quando uma pessoa se sente... digamos: o último cachorro- quente após saída de jogo de futebol? Martinha! Ou que ela achava que era.
Sem querer, pelo mesmo é o que parecia, a moça implantara em sua vida o que vou chamar de Teoria do Achismo. Isso mesmo. Martinha passava seus dias achando. Quer ver?

Ela achava de pés juntos que o Sr. Hélio, vizinho de porta, era gay. Ela nunca soubera de nada que o comprometera como orgias, flagras no elevador ou barulhos denunciadores à noite; no entanto, o lenço despretensiosamente colocado no bolso do blazer e o jeito que ele segurava a chave já pronto pra abrir a porta, era a guilhotina pura. No alto do seu achismo, Martinha pensava: esse velho não me engana!

No trabalho, dona Viviam, secretaria do grupo há 27 anos era a da vez. Sim, Martinha, encrencava com aqueles sapatos de verniz salto cinco. Ela achava que dona Viviam nunca tivera tido mais que dois homens na vida. E se teve orgasmo alguma vez, fingiu. Além disso, achava que ela deveria viver entre gatos e chá de capim-santo: solteirona. Sem falar que Martinha achava o fim, dona Viviam, sequer parar para um cigarrinho e falar mal dos chefes. Mesmo sem nunca ter ouvido uma história sequer da boca da vitalícia funcionária, Martinha, achava que certas coisas nem precisavam ser ditas.

O caso com Henrique não durou mais que dois meses. Martinha sempre achou que o rapaz a traia com a Michele, ainda que os dois nunca tivessem se encontrado. Ela dizia que isso era sexto sentido. Michele era a sobrinha do Sr Cido, dono da padaria do bairro. Martinha, sempre que via a moça no caixa achava que ela sim combinava com Henrique. Daí pro sexto sentido era um pulo. Nadando em duvida, achou melhor largar.

Tenho pra mim que Martinha era a maior vítima do seu veneno, pois mesmo malhando todos os dias ela se achava gorda. Gastava mais que ganhava, afinal, pagava sempre a primeira e, as vezes, a segunda e a terceira rodada já que se achava sem graça sã. Nos primeiros encontros sempre colocava a moeda de um dólar no sutiã: achava que dava sorte. Evitava McDonald´s por achar que as carnes eram feitas de minhocas. Achava que a Aline tinha pais perfeitos e que a Manuela sim era feliz. Achava-se triste, frívola, agridoce. As vezes se achava mais bonita no lado direito. No fundo Martinha estava perdida, tentando se achar.

15.2.10

Enquanto o amor não vem

Enquanto o amor não vem
Continuo confiando nas cartas do tarô,
Desenhos corações flechados no espelho vaporizado do banheiro,
Contemplo o céu antes de dormir a espera de uma estrela cadente.

Enquanto o amor não vem
Fico sem saber se peço mesa pra um ou dois,
Leio rótulos de cerveja,
Acordo do lado de lá da cama.

Enquanto o amor não vem
Evito andar de roda-gigante,
Passo dias de pijamas
Compro cravos ao invés de rosas.

Enquanto o amor não vem
Tenho certeza que o Se morreu de Quase,
Arrumo o cabelo antes de dobrar a esquina,
Brinco de dardo.

Enquanto o amor não vem
Deixo-me solto como crianças arteiras em uma rua sem saída,
Troco seis por meia dúzia,
E sigo beijando de olhos abertos.

7.2.10

Cheiro de Pessoa

Rosa era sapateira desde pequena e mesmo nunca tendo frequentado escolas, adorava ler os escritos de um tal de Fernando Pessoa. Ela não sabia quem era aquele que descrevia a angustia existencial que ela sabia sentir como ninguém. Mas todos os dias depois de baixar as portas, cheirava um pedaço de couro embebido em cola, lia e ali existia. Morreu aos 47 anos com overdose de sabedoria.
Sr Pedro, freguês assíduo da sapataria, acordou num dia de Sol e resolveu colocar seus sapatos para tomar ar puro. Quando retirou as palmilhas, viu que dentro de cada um deles existiam papéis colados com escritos de Fernando Pessoa. Sr Pedro nunca se perdôo por ter esquecido, em um lugar qualquer, sua coleção de livros do poeta. Sentado debaixo de um pé de manga bourbon, o velho folheou seus sapatos:

Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?

Não sou alegre nem triste.
Verdade não sei que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sinto o que Deus fadou.

Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...
19-8-1930

Quero ser livre insincero
Sem crenças, dever ou posto
Prisões, nem de amor as quero.
Não me ame, porque não gosto.
26-8-1930

O vento tem variedade
Nas formas de parecer.
Se vens dizer-me a verdade,
Porque é que ma vens dizer?
Verdades, quem é que as quer?
8-3-1931

Quando é que o cativeiro
Acabará em mim,
E, próprio dianteiro,
Avançarei enfim?

Quando é que me desato
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto?
Quando é que me serei?

Quando, ao virar da esquina
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna
Da alma que Deus me deu?

Quando é que será quando?
Não sei. E ate então
Viverei perguntando:
Perguntarei em vão.
13-3-1931

Vão breves passando
Os dias que tenho.
Depois de passarem
Já não os apanho.

De aqui a tão pouco
Ainda acabou.
Vou ser um cadáver
Por quem se rezou.

E entre esse dia
Farei o que fiz:
Ser qual quero ser,
Feliz ou infeliz.
28-3-1931

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia.
Ser eu é não ser.
Viverei fingindo
Mas vivo a valer.
5-4-1931

Se estou só, quero não estar
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se não o fizer,
Fica perdido na estrada.
2-7-1931

Textos extraídos  do livro Poesia - II 1930-1933, do poeta português Fernado Pessoa.
Homenageado especial do Poesia no Clube.