19.9.09

Caixa de saudade

Há tempos que Naldinho não mexia na caixa de bagunças. Lá ficou por horas. Deparou-se com cartas, fotos, cartões-postais, ingressos de teatro, calendários com datas sublinhadas, papel de bala com declarações de amor, pequenos objetos, lembranças, saudade, vida. Sempre pensava que um dia teria que fazer uma limpa naquilo. Deixar somente o que interessava, mas adiava essa data há anos, pois não saberia cortar parte de sua história. Sabia sim, que aquilo tudo no fundo era ele. E como se dividir?

Sorrio muito quando viu a foto de um carnaval que todos saíram vestidos de Brasil: metade do grupo Cruzeiro Novo e a outra metade de URV. A cara da Claudinha com o Marcelão e o Vitinho a segurando no colo, o fez lembrar que naquele grupo de amigos todos se sentiam seguros. Mais dois carnavais e a turma se desfez. Nunca mais nem troca de e-mails. Por anda andava a Claudinha? Será que casou? Teve filhos gêmeos como ela sempre quis? Naldinho abraçou a foto e ali ficou por algum tempo.

Mais uma cavucada e a carta do Affonso apertou seu coração. Estudaram o ginásio e o colegial juntos, eram amigos de um guardar lugar pro outro no refeitório, de fumar os primeiros cigarros juntos, de ver a vida engrenando. Affonso mudou de cidade assim que os estudos terminaram. Em uma das cartas trocadas veio a foto do casamento dele com uma moça da nova cidade. Pelo retrato via-se que o casal estava feliz. Mais algumas mudanças de cidade e os endereços se perderam. Naldinho ainda se lembrava da promessa que um seria padrinho de casamento do outro. E molhou os olhos quando viu que entre as folhas de uma das cartas, Affonso, enviou o discurso que ambos leriam nas cerimônias, escrito debaixo de uma seringueira, durante uma aula cabulada. Tomou água, respirou três vezes bem fundo e chorou ao se deparar de frente com a vontade de querer contar tanta coisa pro amigo, saber das novidades. Mas onde estaria o Affonso?

Tentou guardar a caixa depois disso. Mas de tanto mexer ela não fechava, algumas coisas estavam ficando de fora entre elas um chaveiro desses que as empresas fazem de lembrancinha de final de ano. Foi um agrado que o primo fez na última vez que se encontraram. Conversavam feito dois adultos: carreira, amores, vontades, sonhos, tudo embalado por carne de churrasco do dia anterior e uma cerveja gelada. Haviam crescidos juntos, adoravam o macarrão de carne moída feito pela mãe do Naldinho e, mesmo um jogando bola melhor que o outro, se protegiam. Seguiram caminhos diferentes. Em um desses caminhos o primo se foi. Naldinho não conseguiu conter as lembranças dos muitos natais, dos aniversários, das festas juninas, das molecagens aprontadas. Chorou de soluçar com saudade do primo e da vida que tinham juntos. Para ele o parceiro ainda estava lá, tomando cerveja e a qualquer momento eles poderiam voltar a conversar. Como não se despediu, o primo ainda estava vivo.

A caixa entreaberta foi deixada sobre a cama. Naldinho foi em busca de ar fresco. Sentou-se no banco de uma praça ao lado de uma avultada senhora de olhar dourado, vestido cumprido de chita, lábios fartos, que segurava um maço de alfazemas na mão e tinha o sorriso de Benedita, aquelas pretas sabias. Sem pestanejar se virou para o lado e perguntou:

- A senhora já viveu mais que eu e deve saber por que os amigos não são pra vida toda? Não gostaria de perdê-los ao longo da trajetória. Sei que às vezes é preciso uns irem para outros virem. Mas por que não posso acumular todos em meu ciclo? Tenho muita vontade de saber o que a Kika anda fazendo. E o Testão como engenheiro, o que deu? Queria muito contar pro Aguiar que gosto de poesias, falar pro Emerson que até o encontrei na internet mais não me manifestei com medo de ele não se lembrar de quem eu era. Por que tem que ser assim?

- O meu filho, acho que os amigos são como banho quente em dias de cansaço: desejamos muito, ficamos lá por horas, despidos de tudo, dividindo pensamentos, cantando, chorando, sendo apenas essência. No entanto, a água que sai do chuveiro vai pelo ralo e não volta mais. Se a prendermos em pouco tempo ela perderá suas qualidades. Pode não aceitar, mas é necessário que ela vá para que outra nova venha. Tenho pra mim que amigos são companheiros colocados em nossas trilhas para caminhar conosco até determinada porteira. De lá seguimos só até que outros cheguem. E o amigo que passou encontrará outros e assim o ciclo vai se formando. A essa roda dei o nome de: saudade.

Em casa, Naldinho, abriu novamente a caixa e colocou dentro dela um ramo de alfazema, sem se desfazer de nada, colocou a caixa de saudade no lugar de sempre.