25.9.09

Massagem nos pés

O sono estava tão longe e já se passava da hora de acalmar os pensamentos. O vento que entrecortava o quarto trazia seu cheiro misturado com o desejo incondicional de ter.
Bobagem! A decisão sempre foi sua. Tolice minha querer te ter, oras.

Quando estava me recostando e as ruas já descansavam o telefone tocou. Com uma voz de fim de festa você declamou palavras da noite. Queria ter te xingado, te mandado pra todos esses lugares bem longe, mas te queria bem perto.
Com a disposição de um coração que pulsa em busca daquilo que a vida oferece, fui!

Alentei, quando de longe vi sua cara de fúria pela minha demora. Morrendo de frio soltou algumas palavras que nem me lembro. Naquele momento seria capaz até de voar. Disfarcei. Éramos apenas eu e você na rua a procura de um canto que pudéssemos nos esquentar. O meu caminhar rápido te irritou, seus pés doíam. Por que não me deixa cuidar de ti?

Nada de mãos dadas, de braços cruzados apenas uma vontade indômita. Acabamos na curva do vento e ali nos despimos. O banheiro não tinha luz e a cama mal nos acolhia. Enquanto massageava seu pé, tomávamos um vinho no gargalo. Manchamos o lençol branco, nos manchamos, nos unimos. Engoli seu sotaque, sua língua, você.
Ainda com o corpo quente você se aconchegou nos meus braços, deixando minha respiração bem no seu ouvido e os corações alinhados. Dormiu.

És-me tão incoerente, inconstante, hesitante e deliciosamente singular. A cada volta que dava na cama mais se emaranhava a mim. Inconsciente deu-me a mão, os braços, a alma. Eu fingindo dormir me deleitava.

Os carros anunciavam um novo dia. Não sabia se te queria com olhos abertos ou fechados. Por uma força motriz invencível nossos corpos decidiram. Fomos um do outro. Enquanto colocávamos as roupas beijei mais uma vez seu pé. Sem mais tempo rumamos para porta. Antes de abri-la mais um beijo. Você saiu primeiro. Paramos na esquina, nos olhamos e cada um pro seu lado. Não olhei pra trás.

Mais uma noite sem sono e cadê você? Queria tanto saber como esta seu pé.

19.9.09

Caixa de saudade

Há tempos que Naldinho não mexia na caixa de bagunças. Lá ficou por horas. Deparou-se com cartas, fotos, cartões-postais, ingressos de teatro, calendários com datas sublinhadas, papel de bala com declarações de amor, pequenos objetos, lembranças, saudade, vida. Sempre pensava que um dia teria que fazer uma limpa naquilo. Deixar somente o que interessava, mas adiava essa data há anos, pois não saberia cortar parte de sua história. Sabia sim, que aquilo tudo no fundo era ele. E como se dividir?

Sorrio muito quando viu a foto de um carnaval que todos saíram vestidos de Brasil: metade do grupo Cruzeiro Novo e a outra metade de URV. A cara da Claudinha com o Marcelão e o Vitinho a segurando no colo, o fez lembrar que naquele grupo de amigos todos se sentiam seguros. Mais dois carnavais e a turma se desfez. Nunca mais nem troca de e-mails. Por anda andava a Claudinha? Será que casou? Teve filhos gêmeos como ela sempre quis? Naldinho abraçou a foto e ali ficou por algum tempo.

Mais uma cavucada e a carta do Affonso apertou seu coração. Estudaram o ginásio e o colegial juntos, eram amigos de um guardar lugar pro outro no refeitório, de fumar os primeiros cigarros juntos, de ver a vida engrenando. Affonso mudou de cidade assim que os estudos terminaram. Em uma das cartas trocadas veio a foto do casamento dele com uma moça da nova cidade. Pelo retrato via-se que o casal estava feliz. Mais algumas mudanças de cidade e os endereços se perderam. Naldinho ainda se lembrava da promessa que um seria padrinho de casamento do outro. E molhou os olhos quando viu que entre as folhas de uma das cartas, Affonso, enviou o discurso que ambos leriam nas cerimônias, escrito debaixo de uma seringueira, durante uma aula cabulada. Tomou água, respirou três vezes bem fundo e chorou ao se deparar de frente com a vontade de querer contar tanta coisa pro amigo, saber das novidades. Mas onde estaria o Affonso?

Tentou guardar a caixa depois disso. Mas de tanto mexer ela não fechava, algumas coisas estavam ficando de fora entre elas um chaveiro desses que as empresas fazem de lembrancinha de final de ano. Foi um agrado que o primo fez na última vez que se encontraram. Conversavam feito dois adultos: carreira, amores, vontades, sonhos, tudo embalado por carne de churrasco do dia anterior e uma cerveja gelada. Haviam crescidos juntos, adoravam o macarrão de carne moída feito pela mãe do Naldinho e, mesmo um jogando bola melhor que o outro, se protegiam. Seguiram caminhos diferentes. Em um desses caminhos o primo se foi. Naldinho não conseguiu conter as lembranças dos muitos natais, dos aniversários, das festas juninas, das molecagens aprontadas. Chorou de soluçar com saudade do primo e da vida que tinham juntos. Para ele o parceiro ainda estava lá, tomando cerveja e a qualquer momento eles poderiam voltar a conversar. Como não se despediu, o primo ainda estava vivo.

A caixa entreaberta foi deixada sobre a cama. Naldinho foi em busca de ar fresco. Sentou-se no banco de uma praça ao lado de uma avultada senhora de olhar dourado, vestido cumprido de chita, lábios fartos, que segurava um maço de alfazemas na mão e tinha o sorriso de Benedita, aquelas pretas sabias. Sem pestanejar se virou para o lado e perguntou:

- A senhora já viveu mais que eu e deve saber por que os amigos não são pra vida toda? Não gostaria de perdê-los ao longo da trajetória. Sei que às vezes é preciso uns irem para outros virem. Mas por que não posso acumular todos em meu ciclo? Tenho muita vontade de saber o que a Kika anda fazendo. E o Testão como engenheiro, o que deu? Queria muito contar pro Aguiar que gosto de poesias, falar pro Emerson que até o encontrei na internet mais não me manifestei com medo de ele não se lembrar de quem eu era. Por que tem que ser assim?

- O meu filho, acho que os amigos são como banho quente em dias de cansaço: desejamos muito, ficamos lá por horas, despidos de tudo, dividindo pensamentos, cantando, chorando, sendo apenas essência. No entanto, a água que sai do chuveiro vai pelo ralo e não volta mais. Se a prendermos em pouco tempo ela perderá suas qualidades. Pode não aceitar, mas é necessário que ela vá para que outra nova venha. Tenho pra mim que amigos são companheiros colocados em nossas trilhas para caminhar conosco até determinada porteira. De lá seguimos só até que outros cheguem. E o amigo que passou encontrará outros e assim o ciclo vai se formando. A essa roda dei o nome de: saudade.

Em casa, Naldinho, abriu novamente a caixa e colocou dentro dela um ramo de alfazema, sem se desfazer de nada, colocou a caixa de saudade no lugar de sempre.

12.9.09

Merda


Tem dias que só penso
faço
falo
e me sinto um
MERDA
Que merda!
Será que é por isso que estou vivo?

7.9.09

Ensina-me a rezar


A pensão de corredores longos, paredes frias, banheiros pequenos e vista para os panfleteiros do Centro da cidade era o que tinha a ofertar.
Você aceitou. Sem se preocupar com o moço da portaria que nem se quer levou seus olhos em direção aos nossos. Pegamos a chave e nos perdemos.
No colchão sem molas, contemplamos um céu pintado por algum pintor que ali ficara e, sem dinheiro para arcar com as despesas, fez um escambo com o dono da hospedaria.
Por algum tempo nada falamos, lembra? Apenas um entrelaçar de mãos bem fortes. Até que sem mais poder resistir deixei de ser eu.
Fui ao teu encontro e ali queria morada. Fomos embalados pelo violinista de feições nordestinas que roubava as atenções dos passantes que corriam para casa no final do dia, bem na esquina da prefeitura. Quando tocou sua música, nem se deu conta que suas mãos desviavam dos fios descascados.
Existimos com veemência.
Será que havia serviço de quarto? Não nos demos conta. O encontro das salivas não deixou a sede chegar.
Re-existimos.
Engraçado: quando estou com você sou diferente daquilo que sonho ser. Tens o dom de me transformar num autista.
Não te falei, mas adorei ver televisão nos seus braços. Levando nossa jura adiante de sermos sinceros sempre, extasiei-me mesmo inalando seu cheiro. Lembro-me que sorria com a barriga e aquelas pequenas contrações não me deixavam dormir e sonhei acordado.
A chuva forte nem avisou que viria. Se soubesse rezar pediria para que chovesse sempre na hora das partidas.
Você ficou. Fui buscar o que comer. Pão molhado no café um do outro.
Dormimos emaranhados.
Queria ter te acordado durante a noite e te contar meus sonhos. Resisti.
Chorei quando despertei e não te vi.
Será que voltas?
Ensina-me a rezar.

2.9.09

O prato na pia

Duas voltas e a porta estava destrancada.
A pasta molhada de chuva foi largada ali mesmo.
O celular escorregou por algum canto no sofá.
A chave? Foi-se, sabe lá Deus pra onde.
Geladeira aberta, pizza no forno e cerveja nos lábios.
Um suspiro seguido de um gemido e o pedaço de azeitona foi retirado da erosão do dente lá do fundo.
Olhar subversivo, sorrisos descabidos, tosse trancada, barriga cheia, forno acesso, lixo aberto e cama.
Qual é mesmo o valor de um prato na pia?