23.8.09

Panela de pressão


Ângela exauri-se de expor a cara na janela todos os dias e de lá inferir sobre os passantes, os vizinhos e os inimigos. Resolvera se desfazer da velha companheira: lixo seria o destino da almofadinha bordada que servira de suporte para os seus cotovelos esbranquiçados.

Com a tramela fechada foi obrigada a desabotoar o vestido puído e olhar para o que havia sido alinhavado. Seus olhos estavam perdidos, há tempo não tomavam a direção tão bruscamente imposta.
Naquela manhã o aroma do café não dobrou a esquina. O grito de Cida chamando pela vizinha podia ser ouvido há passos dali. Ângela estava deliberada: nada de feira, nada de folhear o catálogo de compras, nada de separar as partes constituintes de um todo e tão pouco falar o mal pelo mal.


Como não se passou da hora de almoçar, sorvera as primeiras lágrimas ao se lembrar que com seu comento a respeito do empréstimo da panela de pressão, Zete, teve que sair às pressas da rua. Sim! Falara em alto e bom tom na janela, na fila da venda e no encontro de casais na igreja que achara um absurdo alguém pedir uma panela emprestada, ainda mais de pressão. Mesmo não concordando, o Conselho de Vizinhas optara por expulsar Zete.


Sem fome e embriagada pelo cheiro de bolo de banana no forno que vazava pela porta, não conseguiu relutar com sua memória que trouxera Cibele, a vizinha da frente: prestativa, sorridente e boleira de mão cheia. O nó no peito se tornava maior à medida que se lembrava que não a tragava. O simples arrastar do chinelinho de pelúcia no taco encerado era capaz de amotinar os sentimentos mais tranqüilos.

Cibele produzia em Ângela uma irritabilidade que a desconcertava e fazia seu coração triplicar os batimentos. Não era só a lerdeza da vizinha de porta em bater os ovos, lavar as roupas e arrumar a casa que a tirava do chão, às vezes, o sorriso bonito dela a deixava com raiva, isso: raiva! Ângela chorou como se tivesse perdido o dedo anular. Tentou conter as próximas lágrimas que teimavam em descer. Chorou! Cibele não supunha de tamanho sentimento. Para ela, Ângela era pau pra toda obra, capaz de dividir tudo, até pregador de roupas.


A noite trouxe a tia Marinalva. Dividiam uma casa amarela na rua de nome Azul. Tentando esconder os olhos vermelhos colocou mais cebola na panela. A tia não falava muito. Nada falou. Ângela comeu sopa sem pão e como de costume colocou cabelos no que sobrara, pois mesmo cada uma fazendo sua comida, tia Marinalva, sempre aceitava o que a sobrinha ofertava por educação. As duas se suportavam, já estava sendo assim por anos.
Mas o que Ângela realmente não tolerava era a risada da tia que ecoava constantemente pelos cômodos vazios da casa. Quando Marinalva sorria levava a cabeça e parte das costas para trás, o peito grande ficava enorme e para completar sempre dava as duas palminhas antes finalizar o riso. Era assim sempre que ouvia uma piada, assistia à televisão ou quando ria de si mesma e de seus esquecimentos costumeiros. Ângela, sempre que ouvia essas risadas pensava que estava jogando óleo quente na cara da tia.


Trezentas e oitenta e duas voltas para esquerda e duzentas e sessenta e seis para direita foi o que Ângela conseguiu contar antes de dormir. Como sempre teve dúvidas em relação à verdadeira ingenuidade dos carneiros, evitava trazê-los para sua cama. O sono foi rápido como suas últimas decisões. Sentada na cama enumerou mais uns nove desafetos gratuitos. Entre eles o padeiro Jucelir e sua mania de fazer pausas entres os diálogos; a Ivete e sua compulsão por compras mesmo estando desempregada; a prima Tina habituada a gozar as férias na casa amarela com sua mania de deixar copos pelos móveis; o pai que faleceu longe e cedo demais; São Judas Tadeus por sua morosidade ante as causas urgentes; Shirlei por usar terças, quintas e sábados o mesmo vestido turquesa e segundas, quartas e sextas, o florido de fundo cinza de sempre; o filho da Clotilde por escutar música alta capaz de ser ouvida no inferno, local esse que Ângela deseja ao rapaz; a moça da loja de armarinho por ter um dedo grosso e cutículas exageradas e ela. Sim, Ângela criara um desafeto consigo mesma. Completamente no ódio dormiu.


Quando acordou, mau se vestiu e foi logo abrir a janela. Em cima da almofadinha catada do lixo, colocou a panela de pressão com uma placa que podia ser lida: empresta-se!