7.2.10

Cheiro de Pessoa

Rosa era sapateira desde pequena e mesmo nunca tendo frequentado escolas, adorava ler os escritos de um tal de Fernando Pessoa. Ela não sabia quem era aquele que descrevia a angustia existencial que ela sabia sentir como ninguém. Mas todos os dias depois de baixar as portas, cheirava um pedaço de couro embebido em cola, lia e ali existia. Morreu aos 47 anos com overdose de sabedoria.
Sr Pedro, freguês assíduo da sapataria, acordou num dia de Sol e resolveu colocar seus sapatos para tomar ar puro. Quando retirou as palmilhas, viu que dentro de cada um deles existiam papéis colados com escritos de Fernando Pessoa. Sr Pedro nunca se perdôo por ter esquecido, em um lugar qualquer, sua coleção de livros do poeta. Sentado debaixo de um pé de manga bourbon, o velho folheou seus sapatos:

Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?

Não sou alegre nem triste.
Verdade não sei que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sinto o que Deus fadou.

Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...
19-8-1930

Quero ser livre insincero
Sem crenças, dever ou posto
Prisões, nem de amor as quero.
Não me ame, porque não gosto.
26-8-1930

O vento tem variedade
Nas formas de parecer.
Se vens dizer-me a verdade,
Porque é que ma vens dizer?
Verdades, quem é que as quer?
8-3-1931

Quando é que o cativeiro
Acabará em mim,
E, próprio dianteiro,
Avançarei enfim?

Quando é que me desato
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto?
Quando é que me serei?

Quando, ao virar da esquina
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna
Da alma que Deus me deu?

Quando é que será quando?
Não sei. E ate então
Viverei perguntando:
Perguntarei em vão.
13-3-1931

Vão breves passando
Os dias que tenho.
Depois de passarem
Já não os apanho.

De aqui a tão pouco
Ainda acabou.
Vou ser um cadáver
Por quem se rezou.

E entre esse dia
Farei o que fiz:
Ser qual quero ser,
Feliz ou infeliz.
28-3-1931

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia.
Ser eu é não ser.
Viverei fingindo
Mas vivo a valer.
5-4-1931

Se estou só, quero não estar
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se não o fizer,
Fica perdido na estrada.
2-7-1931

Textos extraídos  do livro Poesia - II 1930-1933, do poeta português Fernado Pessoa.
Homenageado especial do Poesia no Clube.