29.5.11

Economia de pensamentos


Ruth, as vezes, odiava a velocidade da vida. Ainda ontem era setembro e amanhã é quase junho. O que mudou? Melhor não colocar na balança, pensou ela.
Logo após o Natal jurou para si mesma não mais fazer planos sérios. Deixar de ler o tarô do dia e aceitar as rasteiras do destino seriam suas únicas metas.  Mas ela não conseguia. Por que será?
Sua mãe, dona Carmem, sempre que vinha da missa, enquanto fritava umas fatias de queijo na frigideira, soltava a mesma pergunta:
- Já sabe o que vai fazer da vida, minha filha?
Ruth retrucava algumas palavras como resposta e feito faísca sumia dali.  Na cama pensava, pensava, pensava até não mais dormir.
O tempo estava passando e ela notou que ainda não tinha cortado franja, que nunca foi amada, nem sequer amante. As voltas dela na rua se resumiam a uma ou outra montagem de Sartre por grupos de teatro amador e a conversas nas salas de bate-papo sobre os quereres da vida.
O que mudou?  
O dia já raiava pelas cortinas quando ela se levantou bruscamente da cama como quem teve uma luz divina: é isso!
Para Ruth talvez todo mal estivesse no pensar. Foi então que ela decretou sua mais nova lei de existência: economizar pensamentos. Passaria a poupar o que mais vinha gastando até então.
Ao invés do teatro, na sexta foi ao Clube da praça, sozinha. Deixou a jaqueta em uma cadeira qualquer e na pista dançou a coreografia do Flashdance todinha. Se a Claudia e a Tati riram ela nem notou.
Encontrou o Marcinho, seu vizinho do tempo de infância e hoje noivo da Talita, na padaria dia desses e ao invés de trocas de sorrisos, lembranças de brincadeiras como a do copo que andava; segurando sua baguete pela ponta que saia do saco, socou-lhe um beijo: quente, demorado e profundo. Quando o rapaz abriu os olhos nem viu que ela já havia cortado a esquina rebolando.
Sem dinheiro para cursar a faculdade de Moda na cidade vizinha, resolveu parcelar o curso de corte e costura da Dona Alzira. Aulas três vezes por semana, ali mesmo, no puxadinho que a mais famosa costureira fez alinhavando desejos.
Encontrou o Wagner, o ex, duas ou três vezes por acaso na rua e a antiga vontade de fazer aqueles discursos- vingança-lava alma não poluíram sua cabeça. Passava por ele sempre rebolando.
Numa tarde qualquer leu Quincas Borba por diversão seguida de um porre de vinho de garrafão. Comprou uma bicicleta usada e no sábado passado assistiu Minha vida sem mim. Chorou! Dias atrás pediu um abraço ao pai antes de dormir.
Dormiu. Se sonhou esqueceu.
Por insistência da amiga Emilia, foi falar com o pastor da igreja. Para Emilia só poderia ser algum tipo de possessão do demônio alguém não querer mais pensar. Como assim? Perguntava-se a amiga. Ruth saiu da salinha do pastor com um sorriso de canto de boca e disse para Emilia que não havia sido dessa vez que ela entraria para o exército da salvação. Deixou a igreja rebolando.  
No caminho de volta para casa passou na banca do Sr. Carlito e pediu para embrulhar quatro ou cinco revistas dessas de fofoca.  O troco foi de bala 7 Belo. Sr Carlito gritou Sr. Adão do pastel pra correr ali rapidinho e ver a moça chupando bala enquanto ia... rebolando.
Encontrou sua mãe no porta de casa, ela vinha da missa e Ruth sabia o que lhe esperava. O vento bateu a porta tão forte que quase derrubou o quadrinho pendurado escrito Lar doce lar.
Cortando queijo a mãe soltou a flechada:
-Ruth, minha filha, já sabe o que vai fazer da vida, daqui a pouco você vai fazer 28?
Com as palmas das mãos viradas para o céu e olhando sem piscar dentro dos olhos da mãe, respondeu depois de sorrir:
- Viver, mãe. Estou e vou viver a vida que tenho aqui nessas mãos e não a vida que penso ter.
Saiu da cozinha rebolando.