18.11.10

A Roda


Rosária deu pulos de alegrias quando realmente descobriu o que seria aquela armação de ferros sendo erguidos bem na altura da sua janela. Por dias quebrara a cabeça tentando adivinhar e arriscara de tudo: escultura ultra – pós –moderna, ponte aerodinâmica e pensou também em um super elevador panorâmico. Até que um dia, domingo de manhã para ser mais exato, ao desgrudar as cortinas de gorgorão amarelinho palha, lá estava ela, girando.
A possibilidade de ter uma roda-gigante como pano de fundo da sua janela e bem na altura dos seus olhos encheu o coração da menina moça de esperança e até de alegria. Desde que usava fita de cetim no cabelo que as cabines giratórias a encantavam. Uma vez, depois da missa, havia na cidade um desses parques itinerantes e ela quase deu uma volta, mas a mãe tinha que correr pra esquentar a janta do pai e ela se foi, arrastada pelo braço.
Anos depois, ela tinha, praticamente, uma roda-gigante particular. Cada volta avistada equivalia a uma celebração, a uma grande salva de palmas a felicidade!
Sábado à noite, depois da novela, debruçada sobre a janela, Rosária, tentou contar quantas cabines compunham a belezura. Até escureceu a sala para poder degustar a roda da alegria iluminada. Ficara ali por horas fitando as longas filas que se formavam.
Viu, desde lá da bilheteria, um casal de jovens. Ele não deveria ter mais de 22 anos e ela se passou dos 18 foi muito. Ele usava camisa com listras por dentro da calça e ela um bolero de crochê violeta que não foi capaz de distrair o riso nervoso. Talvez porque aquele fosse o primeiro encontro, talvez porque ela tivesse medo de altura ou talvez porque ela optou por crochê ao invés de lã.
Viu também duas mulheres bem altas, com cabelos amarados e brincos gigantes de argola. Elas desceram a rampa de saída correndo e sorrindo largo. Talvez fossem mãe e filha num momento só delas, talvez fossem primas vindas do interior em férias do magistério ou talvez duas namoradas comemorando a comunhão.
Voltas e voltas e Rosária tentava ver se o rapaz de camisas com listras segurava a mão da garota de bolero quando lá no pico o vento inclinava a cabine pra trás. Tentava ver também os desenhos que as crianças faziam com o vapor solto das bocas nos vidros, supostamente, cheio de manchas de dedos.
Até viu um senhor, com 50 anos passado, tentando fotografar lá no altão talvez os filhos, talvez os netos, talvez os afilhados ou quem sabe um grupo de garotos de rua. Rosária viu por várias vezes o flash da máquina se misturando com o ar.
Naquela noite, ela não dormiu.
Por dias as cortinas permaneceram fechadas.
Aquela mesma roda, gigante, iluminada, vista da janela, na altura dos olhos, que trouxera tanta esperança estava rodando no sentindo contrário e cada contravolta enaltecia o abismo existente entre a vida que Rosária tinha e a que desejava ter.
Numa segunda feira, depois do almoço, ela não voltou para creche onde trabalhava desde que se formara. No caminho de volta pra casa tinha sempre a roda, toda grande. Espantou-se quando não precisou desviar das filas. Fazia um ventinho de chuva e a moça da bilheteria lia Morangos Mofados do Caio. Rosária ensaiou encarar, mas lembrou que não havia o que celebrar, tão pouco, aplaudir. Tentou mais uma vez e até fitou a moça que dobrara a ponta da página do livro. No entanto, ela não conseguiu pedir um ingresso avulso. A moça voltou a ler.
Rosária correu pra casa. Sacou a caixa de pregos do guarda- roupas e com marteladas profundas lacrou as cortinas, clarinhas, na janela de madeira.
Naquela noite, ela não dormiu!