29.4.10

Colher de chá


-Não, não, não!
- Eu entro de qualquer jeito, suas tentativas de bloquear a porta são infundadas.
- Mas eu estava numa boa sem você. O que te deu para aparecer assim, de repente, mais uma vez, de novo?
- Você sabe essa resposta.
- É, pode ser que eu saiba, mas, realmente, não entendo porque vira e mexe estamos juntos. Não gosto de você e desses seus trejeitos espaçosos, sórdidos, mesquinhos; que faz tudo parecer pardo cheirando a lama. Pelo tempo, até já poderia ter me acostumado a conviver contigo, no entanto, não te quero por perto.
- Engraçado esse seu discurso pseudo-neurolinguístico. Você é tão ridículo as vezes! Insisto, você sabe porque dei as caras outra vez por aqui. Meu lema é: me chama que eu vou!
- Mas até ontem estava tudo jóia, cantarolei umas ou duas canções, fumei pouco, bebi quase nada, levantei as sobrancelhas ao cruzar com o vizinho e, de repente, você me aparece com esse seu sorriso meia boca fechada. Levanta do meu sofá! Desesparrame-se! Pare de brincar com o zíper da almofada! Vá! O que preciso fazer para que você me deixe? Vamos, me diz?
- Eu nunca te deixarei, a atitude deve partir de você. Sabe que a vida desse lado, digo, do meu lado é mais cômodo, até diria: espontâneo e acessível. Já, na contramão, o trabalho é árduo, diário, exaustivo e efêmero. Viver feliz dá trabalho. E vocês estão constantemente sendo empurrados pelas pedras que os ajudaram a subir. Pare de fazer essa cara de atônito. Tenho pra mim que logo dominarei os espaços, as entranhas e tudo mais. Eu sei que ontem você acordou bem, sem mim, fez o que queria e sonhava, relutou em ir pra cama cedo tentando prolongar  o dia denominado feliz.Tolice! Você acordou hoje e aqui estamos, mais uma vez e juntos.
Tristeza, sai da minha casa, da minha vida e não volte nunca mais. Vai, sai!
- Eu vou. Mas me manterei de prontidão. Na primeira lágrima caída eu volto. Afinal, nossa relação é inevitável. Não deveria mais vou ter dar um conselho: aprenda a lidar comigo, me chame pra conversa, descubra mais sobre mim. Quem sabe a gente se entende e eu te dou uma colher de chá?