1.1.14

Os meios de 2014

Em 2014 quero ser surpreendido outra vez. Com coisas boas. Coisas novas.
Quero cantar sem parar como fiz no show do Paralamas, do Lulu e do Roupa Nova.
Quero ficar sentado um tempo depois que alguma peça de teatro acabar tentando digerir a última cena. Ver muitos outros filmes como Tatuagem.
Quero trabalhar ainda mais e sair mais cedo pra aprender algum esporte aquático. Quero farofar mais na beira da praia com a família da Monica, que já adotei como minha. Quero pedir menos, rir mais por motivos bobos como aprendi com meu cachorro. Aliás, com ele tenho aprendido a ter paciência, a aceitar o outro como ele é. Almodóvar é mesmo um mestre.
 Quero beijar mais encostado no muro de uma rua qualquer. Fazer mais sexo debaixo do chuveiro.  Fazer muito sexo. Também quero fazer amor. Quero um amor. Quero amar como nunca antes. Para isso preciso viver os meios sem me preocupar com os inícios e os fins. Alguém me ajuda? Adoraria que esse encontro fosse no meio do caminho, de um caminho que mudasse os rumos e os ventos.
Quero que você aí também ame aquilo que te faça bem. Quero que o amor domine todos os corações, todas as conversas e que no último dia do ano toalhas brancas invadam todas as janelas como uma prova que o amor venceu.
Quero continuar ao lado de amigos que me levam feijão quando estou doente. Mas eu não quero ficar doente. Quero amigos que tenho e que terei. Quero planejar menos, quase nada. Quero visitas ensolaradas. Quero que minha família continue sorrindo, muito e cada vez mais e que eles estejam cada vez mais perto de mim.
Quero não dar tanta atenção pro Facebook, menos que já dou. Quero escrever histórias e ajudar meu mundo. Quero ouvir Marcelo Jeneci depois de um copo de cerveja e de um olhar malicioso. Quero continuar tendo minha fé movendo minha vida.  Quero que todos queiram alguma coisa, muitas coisas. O que você quer para 2014?
Quero conhecer outros Santos como conheci em 2013. Também quero fazer malas.  Quero rezar ainda mais e continuar acreditando que sou um ser único. Quero comer carne de panela e bolo de milho. Quero conversar com meu vizinho. Quero que ninguém  volte sozinho, a não ser que queria. Quero mais um pouco de sexo. E de amor.  Quero continuar acreditando que milagres existem e que 2014 será do jeito que ele já foi desenhado e que esses meus quereres sejam apenas faíscas do brilho que esta por vir.
Bom início e bom fim. Que aproveitemos os meios.
Feliz 2014!






18.8.13

Tatuando a arte do afeto

O cinema pernambucano me pegou pela primeira vez com “Amarelo Manga”, em 2002. Depois disso, persegui o cineasta Claudio Assis ávido a espera de mais histórias contadas sobre seu prisma.
Só em “Baixio da Bestas”, de 2006, soube que Hilton Lacerda, era o cara por trás dos roteiros desse novo fenômeno brotado no Nordeste. Daí a cair em “Árido Movie”, A Festa da Menina Morta” e a “Febre do Rato” foi um pulo.
E para coroar essa excelente fase do cinema produzido lá pra cima “Tatuagem”, a estreia de Lacerda na direção, teve sua primeira exibição no Festival de Gramado, que acabou esse final de semana, e levou o Kikito de melhor longa metragem brasileiro.



O filme conta a história do teatro Chão de Estrelas, grupo ligado ao deboche e à anarquia. Os personagens principais Clécio e Fininha iniciam uma relação homoafetiva diante deste pano de fundo, a ditadura militar durante o ano de 1978.  
Por essa atuação Irandhir Santos (de Febre do Rato também com Nanda Costa e seus pelos) colocou de baixo do braço o prêmio de melhor ator.
No discurso de premiação, Lacerda, de boca cheia, disse que “Tatuagem" é afeto, amor e amizade. E completou dizendo: “Queria dedica-lo à possibilidade de abrirmos outros olhares”.
Vida longa ao cinema pernambucano!

18.12.12

Procura-se um amor de verão


Procura-se um amor de verão.
Daqueles risonhos, safado, vadio, cheio de graças.

Procura-se um amor de verão como nunca visto antes.
Diferente como as ondas do mar e barulhento como fanfarra em dia militar.
Procura-se um amor de verão apto a desatar nós da garganta e que capriche nos laços do tênis.

Procura-se um amor de verão cheiroso, suado e que não tenha medo de dançar na fila do banheiro.
Que não diga eu te amo, tão pouco, repare nos pratos quebrados no armário.
Procura-se um amor de verão que acorde ao poucos.
Que não tenha a pretensão de ser o Sol e não cubra o brilho das noites solitárias.

Procura-se um amor de verão disposto a fazer parte de uma história só com meios.
Que não se importe com as bordas do sanduíche e  que coma sorrindo com canto de boca. Ah! e seja sedento por limonada e sexo.

Procura-se, não desesperadamente, que fique bem claro, um amor de verão que dure o suficiente para conhecer minhas manias de inverno.

Procura-se um amor de verão, tratar aqui!

29.6.12

A vida como ela é

No centenário de nascimento de Nelson Rodrigues comemorados este ano, a obra do mestre esta sendo relançado por todo o país.
O Clube do Bem abre alas para os contos escritos pelo pernambucano chamado " A Vida Como Ela É". Transformado em série televisiva foi transmitida pela Rede Globo.
Na homemagem de hoje: "Martin em casa e na rua".

20.2.12

Quando sei que o amor chegou

Quando sei que o amor chegou?
Não vejo o sinal verde.
Sinto uma coceira vermelha no corpo.
Penso mais.
Choro menos.
Quando sei que  amor chegou,
se ele não avisa nem manda recado.
Do amor até então, só frase de caminhão.
Desse tal amor sei o que achava que sabia.
Quando o amor chega...
Depois da paixão ou antes da ilusão?
Tenho acordado  assustado e vou dormir feliz.
Será que é amor?
Será que é amor...
gostar da briga que se desenha nos meus olhos quando nos lençóis brincamos?
Ser louco pelo jeito que encaracola meus cabelos com seus dedos e das estrelas que  me fez no teto do seu apartamento no térreo?
Queria gostar da maneira que gesticula as mãos,
dos  atrasos absurdos
e da boca fina.
Quando sei que o amor chegou?
Será que ele entrou pela porta do fundo enquanto lavava a louça daquele macarrão sem queijo que servi? E se ele errou de porta?
Uma vez ouvi dizer que o amor é bandido, cego, avassalador e capaz de transformar.
Sinto uma calma, coberto com uma camada dupla de  medo e insegurança recheado com uma voz safada dizendo bem alto: você nunca vai saber.
Amor, amor, amor! Por favor, se você estiver por perto venha para que podemos conversar.
Esperei tanto por ti que não quero te perder antes mesmo de te ter.
Vou fazer um bolo de milho para daqui a pouco.
Chega vem.
Preciso  de uma lista do que falar, como me vestir e essas coisas todas.
Tem alguém na porta.
Será que é  ele?
Será que o amor chegou?

4.11.11

A arte de cada um




17.10.11

A primeira vez é sempre a última chance

Acordei arrependido.
De não ter ido ao último show do Legião nos auge dos meus 15 anos.
De ter feito xixi numa garrafa de guaraná Brahma e ter dado para meu vizinho beber.
De nunca ter acampado.

Arrependido não consegui mais dormi.
Pois podia ter sido advogado e salvo o mundo ou parte dele.
E se eu tivesse me declarado para aquele amor da sexta série?

Quando quase peguei no sono lembrei.
Da briga da vizinha que não apartei e que a Julia ficou sem pai. 
Que não comi pipoca de chocolate o suficiente.
Que sorri pouco e chorei demais.

Arrependido
De não ter dado mais espaço para confiança.
De não ter acreditado no amor incondicional.
De brincar demais com meus amigos imaginários.

Arrependido
De saber na pele que a primeira vez é sempre a última chance.





12.8.11

O que é seu esta guardado


Título Original: Signs
Gênero: Comédia/Curta
País: Austrália
Ano de Produção: 2008
Tempo de Duração: 12 minutos
Direção: Patrick Hughes
Roteiro: Patrick Hughes
Elenco: Kestie Morassi (Stacey) e Nick Russell (Jason)

8.8.11

Hoje



Gosto quando acordo feliz.
Principalmente quando venho de dias negro.
Feliz quero tudo:
Abrir um negócio.
Plantar feijão no algodão.
Ligar para Monica.
Abraçar com que cruzo na rua.
Trocar a lâmpada da sala por uma colorida.
Comer só saladas.
Tirar o pó de cima das portas.
Transar de pé no chuveiro.
Dançar lambada
Ler Houellebecq
Ouvir rádio nas alturas.
Rir.
Dividir.
Somar.
E evitar, o quanto for possível, ir para cama e dormir, já que nunca sei como vou acordar amanhã.

2.8.11

A corrente entre o amor e o sonho

Somos condicionados ao amor. Não tem jeito. Vira e mexe ele nos ronda, às vezes, fica outras vai e demora a voltar. Talvez para que demos mais valor quando ele de novo pelas redondezas estiver.
Por esse tal amor, ou pela falta dele, muitas vezes, somos obrigados a readaptar nossos sonhos, dar a eles outras formas, quem sabe um retoque ou então derrubar o castelinho de areia e reconstruir outra fortaleza.
Mas como se readapta sonhos? Como se con-vive com o amor ou a falta dele?
.
.
.
Contracorriente é uma história de sonhos, sonhos readaptados e de amor.
*Roteiro e direção: Javier Fuentes - León

19.7.11

De cara nova


Fernando Pessoal disse uma vez que há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares.  Segundo ele, esse seria o tempo da travessia e se não ousarmos fazê-la ficaremos sempre à margem de nós mesmos.
De braços aberto o Clube do Bem atravessa a ponte de madeiras que balança com o vento. Mudamos. Assim como a vida, os destinos, os sonhos e nós mesmos.
Com um foco maior no ser humano e com um cardápio que vai de viagens a religião passando por crônicas da vida como ela é ou como deveria ser, o CB se prepara para vasculhar verdades nas realidades mentirosas.
Será um prazer ter sua companhia!

29.5.11

Economia de pensamentos


Ruth, as vezes, odiava a velocidade da vida. Ainda ontem era setembro e amanhã é quase junho. O que mudou? Melhor não colocar na balança, pensou ela.
Logo após o Natal jurou para si mesma não mais fazer planos sérios. Deixar de ler o tarô do dia e aceitar as rasteiras do destino seriam suas únicas metas.  Mas ela não conseguia. Por que será?
Sua mãe, dona Carmem, sempre que vinha da missa, enquanto fritava umas fatias de queijo na frigideira, soltava a mesma pergunta:
- Já sabe o que vai fazer da vida, minha filha?
Ruth retrucava algumas palavras como resposta e feito faísca sumia dali.  Na cama pensava, pensava, pensava até não mais dormir.
O tempo estava passando e ela notou que ainda não tinha cortado franja, que nunca foi amada, nem sequer amante. As voltas dela na rua se resumiam a uma ou outra montagem de Sartre por grupos de teatro amador e a conversas nas salas de bate-papo sobre os quereres da vida.
O que mudou?  
O dia já raiava pelas cortinas quando ela se levantou bruscamente da cama como quem teve uma luz divina: é isso!
Para Ruth talvez todo mal estivesse no pensar. Foi então que ela decretou sua mais nova lei de existência: economizar pensamentos. Passaria a poupar o que mais vinha gastando até então.
Ao invés do teatro, na sexta foi ao Clube da praça, sozinha. Deixou a jaqueta em uma cadeira qualquer e na pista dançou a coreografia do Flashdance todinha. Se a Claudia e a Tati riram ela nem notou.
Encontrou o Marcinho, seu vizinho do tempo de infância e hoje noivo da Talita, na padaria dia desses e ao invés de trocas de sorrisos, lembranças de brincadeiras como a do copo que andava; segurando sua baguete pela ponta que saia do saco, socou-lhe um beijo: quente, demorado e profundo. Quando o rapaz abriu os olhos nem viu que ela já havia cortado a esquina rebolando.
Sem dinheiro para cursar a faculdade de Moda na cidade vizinha, resolveu parcelar o curso de corte e costura da Dona Alzira. Aulas três vezes por semana, ali mesmo, no puxadinho que a mais famosa costureira fez alinhavando desejos.
Encontrou o Wagner, o ex, duas ou três vezes por acaso na rua e a antiga vontade de fazer aqueles discursos- vingança-lava alma não poluíram sua cabeça. Passava por ele sempre rebolando.
Numa tarde qualquer leu Quincas Borba por diversão seguida de um porre de vinho de garrafão. Comprou uma bicicleta usada e no sábado passado assistiu Minha vida sem mim. Chorou! Dias atrás pediu um abraço ao pai antes de dormir.
Dormiu. Se sonhou esqueceu.
Por insistência da amiga Emilia, foi falar com o pastor da igreja. Para Emilia só poderia ser algum tipo de possessão do demônio alguém não querer mais pensar. Como assim? Perguntava-se a amiga. Ruth saiu da salinha do pastor com um sorriso de canto de boca e disse para Emilia que não havia sido dessa vez que ela entraria para o exército da salvação. Deixou a igreja rebolando.  
No caminho de volta para casa passou na banca do Sr. Carlito e pediu para embrulhar quatro ou cinco revistas dessas de fofoca.  O troco foi de bala 7 Belo. Sr Carlito gritou Sr. Adão do pastel pra correr ali rapidinho e ver a moça chupando bala enquanto ia... rebolando.
Encontrou sua mãe no porta de casa, ela vinha da missa e Ruth sabia o que lhe esperava. O vento bateu a porta tão forte que quase derrubou o quadrinho pendurado escrito Lar doce lar.
Cortando queijo a mãe soltou a flechada:
-Ruth, minha filha, já sabe o que vai fazer da vida, daqui a pouco você vai fazer 28?
Com as palmas das mãos viradas para o céu e olhando sem piscar dentro dos olhos da mãe, respondeu depois de sorrir:
- Viver, mãe. Estou e vou viver a vida que tenho aqui nessas mãos e não a vida que penso ter.
Saiu da cozinha rebolando.

14.4.11

Amor em tempos de crise



Andando desrumado procurando não encontrar ia desviando dos apressados no Centro da cidade que por sorte divina corriam para algum lugar ou para alguém.
Comecei a costear as lojas com barracas nas calçadas quando os pingos de chuva mancharam meus óculos. Abordado por um vendedor com megafone na mão, tentei desviar. Ele insistiu. Relutei. Cedi.
- Liquidação, liquidação!! Quer aproveitar, meu senhor?
- Como?
- Liquidação! Estamos liquidando o amor até o final do dia. É pegar ou largar!
- Posso dar apenas uma olhadinha?
- Mais é claro, meu senhor! Vamos lá no balcão que vou lhe mostrar as opções.
- Como assim opções?
- O negócio se modernizou, espere pra ver!
- É pelo jeito vou pagar pra ver.
- Pois bem, esse aqui é o mais simplezinho. Não tem muita potência. Sem regulagens de intensidade, mas  garanto que funciona. Ideal pra quem não exige muito. Sabe como é, né?
- Sei! E as outras opções quais são?
- Bom, esse aqui sai bastante. Modelo mais moderno, as mães adoram. Com regulagem automática, manual de instruções em quatro línguas e tem até um programador de emoções. Foi sensação no verão e o preço é bem camarada.
- Camarada quanto?
- Antes deixa eu te mostrar o amor última geração. Completinho, mais de seis regulagens tanto manuais quanto automáticas. A prova de silêncios intermináveis, pois aqui atrás tem um MP3 player embutido só com canções de novelas. Nesse compartimento aqui uma caixa de primeiros socorros com Paracetamol, Viagra, Lexotan, gelzinho e tudo mais.  Nos Estados Unidos faz um sucesso enorme e semana que vem vai começar a aparecer nos intervalos do Faustão. Ah! Sem falar no design ultramoderno e em três cores diferentes.
- Mas por que estão liquidando se é lançamento?
- Não sei bem, mas meu gerente falou que eles querem popularizar o amor. Deixar ele mais acessível. Bom isso, não é?
- E como funciona? Quero dizer, como instalo e em quanto tempo começo a colher os resultados?
- Meu senhor, além do manual de instruções com ilustrações, vem um CD de instalação e mais esse mini livro com poesias do... Só um pouquinho que vou verificar o nome do cara. Ah! Fernando Pessoa. Mais fácil que isso não tem. Resultados garantidos, viu?
- Sei. E os preços?
- Vejamos. Vou descartar esses dois mais simples, porque já notei que queres amor de verdade, daqueles de tremer perninha. Real!
- Isso mesmo, real!
- Oh! A campanhia tocou. Sempre que isso acontece quem estiver no balcão da loja pode parcelar tudo em 24 vezes sem juros e no cartão.  É pegar ou largar, não falei?
- Mas se não funcionar, quero dizer, se não nos dermos bem, ou aparecer aqueles problemas de afinidade, incompatibilidade de gênios, ritmos diferentes na cama, sei lá! Posso devolver e rever meu dinheiro de volta?
- Entrar numa relação com pensamento negativo é um grande erro, meu senhor!
- Só estou tentando ser prático, rapaz, realista.
- Ô meu senhor, tente ver que hoje é seu grande dia de sorte. O amor bateu na sua porta. O fato de não trocarmos nem aceitarmos devoluções de produtos de liquidação é pequeno perto disso.  O amor estar no ar. Posso mandar embrulhar?
- Pra presente, por favor!

22.3.11

Ele e Ela


Dois velhinhos.
Ela não ouvia lá muito bem, quase nada.
Ele a ajudava a escutar.
Ela confiava no que ele a transmitia.
Dois  café com leite, disse ele.
E uma rosca doce daquelas ali, completou ela.
Quem coloca as duas colherinhas de açúcar em cada copo e o cravo da índia trazido no bolso do casaco é ele.
A manteiga só de um lado do pão cortado ao meio é ela quem passa.
Ele espera, afinal,  também confia.
Ela bebe.
Ele come.
Não falam nada e nada se ouve.
Apenas olhares iluminados por um amor cego.

28.2.11

Cansado


Cansei de mensagens não respondidas, comida fria e velas apagadas com lágrimas de maré alta.

Cansei de inflar meu coração com remotas possibilidades, possíveis possibilidades e improváveis possibilidades.

Cansei de possibilidades, de perfumar a cama no lado de lá, de cruzar com aquela cópia da chave de casa na gaveta da cozinha e aspirar por reuniões de pais e mestres.

Cansei de ser pretensioso, respeitador, doce, canalha e irreal.

Cansei desse amor cortês, abstrato, surrealista, Tristão e Isolda.

Cansei de sonhar...sonhar que estou amando.

16.2.11

A voz, aquela!


Não faz muito que comecei a ouvir a voz que soa do meu coração. Por anos a desdenhei chamando-a de intrometida, dissimulada, prepotente, inquieta e presunçosa, além de sufocá-la com os gritos da razão.
Acreditar nela era dar de braço com desconhecido e o incerto, deixando a porta aberta para o incontrolável sinuoso caminho da vida.
Dias atrás quis tirar a prova dos noves e saber realmente de que lado ela estava.
O trem estava vazio, o caminho era longo e a chuva que caia no lado de fora embaçava o vidro eliminando minhas possibilidades de distração.
Notei sua presença pelas redondezas. Passará o dia tentando chamar minha atenção. Eu fiz de conta que não era comigo. Limpei parte do vidro com a manga da camisa e fitei o horizonte através de um buraco. Ali fiquei, perdido.
Não sabia de quem era o dever de iniciar a conversa. Ela veio e deu um suspiro longo. Continue olhando pra outro buraco que limpei com as costas da mão. Não podia nem gritar. Fui educado:
- O que você quer?
- Espaço, disse ela.
- Desde quando você pede? Sempre se intromete em tudo, por que agora essa formalidade toda?
- Isso é o que você acha.
- Isso é a verdade. Por que eu deveria dar ouvidos a você entre as milhares de vozes que ecoam dentro de mim? O que tem você de diferente?
- Não tenho e tão pouco sou especial. Sou apenas mais uma.
- Sabia que é esse seu arzinho de superioridade, de ser a dona da verdade, a tal voz, a verdadeira, que me deixa louco? Você bem sabe por onde eu já andei, quanto já cai e sofri pelas minhas escolhas por não ter te ouvido.
- Pelas suas escolhas, como você bem disse.
- É, estou triste hoje.
- Já percebi.
- Então por que não me diz algo que me faça sofrer mesmo?
- Porque a dor tem que ser sentida. E junto com ela vem a esperança. E entre você e elas estão a agonia, o otimismo, um pouco de reza e a certeza de um novo amanhecer.
-A voz filósofa agora!
- Não, sou e sempre serei a voz do seu coração. Muitas vezes que você disse que caiu eu estava lá, tentando me fazer ser ouvida. Mas você optou por outras. Isso é não é errado. Muitos chegam até nós pela dor, poucos são os que vêm pelo amor.
- Tantas vezes até me pus de joelhos pedindo uma ajuda que fosse para fazer as escolhas certas ou as menos doloridas e quebrei a cara. Onde você estava?
- Aí dentro, como você mesmo disse, existem milhares de vozes. Tem a voz da razão, da beleza, da soberba, do impulso, da luxúria, do ego consciente, do ego inconsciente e muitas outras. Em algumas situações eu simplesmente assisto sua opção de que voz levar pra casa. Mais você já me ouviu muitas vezes também, apesar de não saber ou gostar.
- Engraçado isso, mas sei quando é você... primeiro os meus dias de paz se vão, uma dor no peito me invade e em seguida uma grande guerra se inicia dentro de mim. E então, quando começo a chorar sei que você, a voz pura, chegou.
- É, o choro é uma das nossas ligações mais forte. Chore! Pode chorar a vontade, estou aqui e não te abandono jamais.
-Promete?
- De pés juntos!

6.2.11

Verdades absolutas

“Quando bato uma punheta com a mão tenho sempre o cuidado de que algum esperma me fique nas mãos. Depois raspo-o com unhas compridas e deixo-o secar e endurecer lá por dentro, para mais tarde, ao longo do dia, possa ir roendo as unhas, como recordação e tributo ao meu belo parceiro de foda. Assim, mastigo- o, salivo-o, gargarejo-o e depois de muito e bem o saborear e derreter, engulo-o.  Pois, chamo-lhe o meu ´bombom de saudosa lembrança´...” *
.
.
O Clube do Bem deseja que 2011 seja um ano na qual as verdades absolutas saiam debaixo do tapete. E torce, muito, para que possamos ser aquilo que desejamos, sem nos preocuparmos se tudo nos interessa e nada nos prende...se somos dois!
Feliz liberdade!
*Trecho extraído do livro Zonas Úmidas  da feminista e multimídia inglesa criada na Alemanha Charlotte Roche

22.12.10

O protetor e a protegida


Estavam os dois lá, numa disputa de asas para saber quem ficaria com a guarda da Catarina. Anjo Ezequiel receberá uma missão invejável e irrecusável e partiu lamentando-se por não mais zelar a vida da senhorita. Mas antes de assumir a nova missão, teria outra que lhe valeria uma auréola: escolher um substituto a altura da protegida.
Anjo Gabriel foi para final sem etapas eliminatórias, nem mesmo testes psicotécnicos. A fama de bom anjo, aliado aos seus milhões de seguidores, o levaram a concorrer com anjo Rafael; novato no mundinho angelical, mas já conhecido como azarão da vez.
Arcanjo Miguel, antes de sair de férias, ficou responsável por ajudar Ezequiel na escolha, criando as tarefas que determinariam o vencedor.  E assim seria: dia após dia durante todo mês de dezembro Gabriel e Rafael usariam todas as suas armas para poder ficar ao lado de Catarina.
Ela, honrando seus 28 anos de trabalho duro como faxineira na Clínica Geriátrica Caminho da Luz, nem se deu conta da guerra santa que se formará lá em cima.
Morava sozinha numa casa de dois pisos, ladeada por duas janelas grandes, um sofá vermelho e um cachorro branco. Gostava de assistir televisão com as luzes apagadas e sempre antes de dormir ficava na sacadinha do quarto intercalando o olhar ora pra cima, ora pra baixo. O silêncio era quebrado pelo latido do cão branco e, as vezes, pelo apito da tostadeira de pães.
Ela não reclamava. A mão grande rachada por cloro era viciada nos cabelos curtos quase todo cinza. O único parente vivo era um irmão que morava longe mais viria para o almoço de Natal. Nada de amores, casamentos, filhos, batons, ou divagações.
Anjo Gabriel, na verdade, queria a guarda de Catarina, porque ouvira pelos corredores que a tal era muito bem vista pelos poderosos lá de cima e que também não lhe restavam muito anos de vida, o que lhe facilitaria o trabalho. E com mais essa no currículo ele estaria a poucos passos de realizar seu sonho e virar decoração para quarto de criança.
Os primeiro três dias de tarefas foram designados a Gabriel. Logo no primeiro o anjo pop star se estafou. Catarina chegou dez minutos mais cedo ao trabalho, cumprimentou a todos, cantarolou alguma canção dos Secos e Molhados e antes de iniciar a lavação dos banheiros, vestiu uma toquinha de papai Noel. Anjo Gabriel se recusou a entrar nos lavabos. Esperou pelo lado de fora. Tentou fazer palavras cruzadas com os velhinhos, derrubou dominós com sopro e até tentou cochilar. Catarina terminou o primeiro turno pontualmente às 12h e voltaria às 17h para mais uma jornada. Nesse meio tempo torradas, passeio pelo parque com o cão branco, uma passada no açougue, talvez um filme, talvez aparar as unhas do pé ou quem sabe lavar umas peças de roupas.
Na terceira noite, anjo Gabriel, jogado no sofá, atônito, não entendia de onde vinha todo aquele conformismo. Não passava por sua auréola o fato de uma mulher com 57 anos de idade, naquela situação parecer feliz, se sentir uma pessoa de sorte e a ele nada pedir.
No primeiro dia com anjo Rafael, Catarina, por onde passava na Clínica avistava confraternizações natalinas. Eram as garotas do escritório fazendo amigo-secreto, as enfermeiras do terceiro andar trocando bombons, familiares visitando os internos e ela ali. A cada nova cena, escorava em sua vassoura, dava um toque na sua touca de papai Noel bem no alto da cabeça e seguia. Quando avistava um ou outro interno afundado na sua solidão e sem ninguém pra ajeitar seus travesseiros, entrava quarto adentro, jogava meia dúzia de palavras, sacava um punhado de balas de goma do jaleco e seguia com seu balde escorado no antebraço, mas não sem antes alinhar os travesseiros.
Anjo Rafael, logo no final do segundo dia, se retirou e abdicou da vaga. Anjo Gabriel logo espalhou pelos quatro cantos que o novato se borrou todo.
Numa conversa com seu melhor amigo, Querubim Felipe, anjo Rafael confessou que Catarina não precisava de anjo de guarda. Querubim Felipe não entendeu a afirmação. E explicando-se ele disse:
Catarina, meu amigo, não é nem de perto santa. Vira e mexa solta um palavrão, tranca o cão branco na cozinha pra poder se masturbar em paz no sofá vermelho, “empresta” rolos de papel higiênico da Clínica para uso próprio; no entanto, ela aceita e acredita na vida que tem. Não que ela nunca tenha tentado nada diferente. Arriscou, sim. Vez que outra ainda vai a matine do forró, prestou alguns concursos públicos e até quase noivou. Mas não luta contra o que tem, tão pouco, vive no que gostaria de ter.  Arcanjo Miguel encostado na porta, escutou a explicação de Rafael ao amigo e se intrometendo na conversa disse:
- As vezes, o pessoal lá de baixo não precisa de anjos. Em alguns momentos eles estão infiltrados no meio deles, são anjos...diferentes, mas reais.
Querubim Felipe, confuso, indagou ao arcanjo o porquê então do anjo Gabriel ficar com a guarda da Catarina.
Respondendo ele disse:
- Muitas vezes entres os anjos daqui também tem o pessoal lá de baixo. Além disso, fico feliz em saber que anjo Gabriel terá muitos travesseiros para ajeitar.

18.11.10

A Roda


Rosária deu pulos de alegrias quando realmente descobriu o que seria aquela armação de ferros sendo erguidos bem na altura da sua janela. Por dias quebrara a cabeça tentando adivinhar e arriscara de tudo: escultura ultra – pós –moderna, ponte aerodinâmica e pensou também em um super elevador panorâmico. Até que um dia, domingo de manhã para ser mais exato, ao desgrudar as cortinas de gorgorão amarelinho palha, lá estava ela, girando.
A possibilidade de ter uma roda-gigante como pano de fundo da sua janela e bem na altura dos seus olhos encheu o coração da menina moça de esperança e até de alegria. Desde que usava fita de cetim no cabelo que as cabines giratórias a encantavam. Uma vez, depois da missa, havia na cidade um desses parques itinerantes e ela quase deu uma volta, mas a mãe tinha que correr pra esquentar a janta do pai e ela se foi, arrastada pelo braço.
Anos depois, ela tinha, praticamente, uma roda-gigante particular. Cada volta avistada equivalia a uma celebração, a uma grande salva de palmas a felicidade!
Sábado à noite, depois da novela, debruçada sobre a janela, Rosária, tentou contar quantas cabines compunham a belezura. Até escureceu a sala para poder degustar a roda da alegria iluminada. Ficara ali por horas fitando as longas filas que se formavam.
Viu, desde lá da bilheteria, um casal de jovens. Ele não deveria ter mais de 22 anos e ela se passou dos 18 foi muito. Ele usava camisa com listras por dentro da calça e ela um bolero de crochê violeta que não foi capaz de distrair o riso nervoso. Talvez porque aquele fosse o primeiro encontro, talvez porque ela tivesse medo de altura ou talvez porque ela optou por crochê ao invés de lã.
Viu também duas mulheres bem altas, com cabelos amarados e brincos gigantes de argola. Elas desceram a rampa de saída correndo e sorrindo largo. Talvez fossem mãe e filha num momento só delas, talvez fossem primas vindas do interior em férias do magistério ou talvez duas namoradas comemorando a comunhão.
Voltas e voltas e Rosária tentava ver se o rapaz de camisas com listras segurava a mão da garota de bolero quando lá no pico o vento inclinava a cabine pra trás. Tentava ver também os desenhos que as crianças faziam com o vapor solto das bocas nos vidros, supostamente, cheio de manchas de dedos.
Até viu um senhor, com 50 anos passado, tentando fotografar lá no altão talvez os filhos, talvez os netos, talvez os afilhados ou quem sabe um grupo de garotos de rua. Rosária viu por várias vezes o flash da máquina se misturando com o ar.
Naquela noite, ela não dormiu.
Por dias as cortinas permaneceram fechadas.
Aquela mesma roda, gigante, iluminada, vista da janela, na altura dos olhos, que trouxera tanta esperança estava rodando no sentindo contrário e cada contravolta enaltecia o abismo existente entre a vida que Rosária tinha e a que desejava ter.
Numa segunda feira, depois do almoço, ela não voltou para creche onde trabalhava desde que se formara. No caminho de volta pra casa tinha sempre a roda, toda grande. Espantou-se quando não precisou desviar das filas. Fazia um ventinho de chuva e a moça da bilheteria lia Morangos Mofados do Caio. Rosária ensaiou encarar, mas lembrou que não havia o que celebrar, tão pouco, aplaudir. Tentou mais uma vez e até fitou a moça que dobrara a ponta da página do livro. No entanto, ela não conseguiu pedir um ingresso avulso. A moça voltou a ler.
Rosária correu pra casa. Sacou a caixa de pregos do guarda- roupas e com marteladas profundas lacrou as cortinas, clarinhas, na janela de madeira.
Naquela noite, ela não dormiu!

15.9.10

A ponte de dúvidas

Duvidar? Sempre duvidei. E era nesse cepticismo que constantemente planejava tudo, cada passo, cada emoção.
Contudo, sabia que apareceria. Um dia. Poderia ser à noitinha ou de manhã bem cedo. De baixo de chuva ou de suor. O caminho permanecia sinuoso. No entanto, me coloquei bem no centro. No final da descida.
São João Batista, lá de cima, deve se torcer de rir das exigências: um pouco disso, bastante daquilo, nem tanto disto e... eu, sempre aqui, com um belo punhado de dúvidas perdidas no emaranhado de incertezas da real possibilidade da existência de alguém como...você!
Duvidei do seu cheiro cítrico, da sua idade cronológica, do seu gosto por películas mexicanas, do seu sotaque campeiro, da sua intensidade desmedida e até mesmo da sua puerilidade de dizer-me que se perdera no caminho de volta pra casa.
De certezas, eu e você separados por uma ponte de madeiras velha,  minha vontade indômita de te beijar mais uma vez e o desejo de te procurar querendo não te achar. Já que atravessar  essa ponte seria muito mais que lutar pelo equilíbrio de me manter em pé. Seria deixar o delineado, esquecer as apostas, abandonar um mito, cansar de ser e estar só, trair a minha solidão  e se deleitar com a possibilidade de ter ao meu lado e de mãos dadas.  Atravessar essa ponte seria se beneficiar da dúvida.
Arrumei minhas malas e fui. Preferi não avisar. Surpresa, sabe? Só quando me assenti notei que a ponte havia caído. Na dúvida, voltei. 

3.7.10

Brigadeiro, o bom da festa

Aniversário sem brigadeiro não vale, então, a mostra fotográfica Horizontes do Bem faz seu papel e traz as esculturas de Gustav Vigeland (1869 - 1943), expostas no Vigeland Park, em Oslo, Noruega. Para se lambuzar!
Fotos por Paulo Rogério




28.6.10

Mais uma fatia de bolo

Mais uma fatia de bolo, do nosso bolo de aniversário!
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Amor cristão

Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga. Na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca.
Amor é o tiro que deram no peito do filho da dona Madalena. E o peito do menino ficou parecendo uma flor. Até a polícia chegar e levar tudo embora. Demorou. Amor que mata. Amor que não tem pena.

Amor é você esconder a arma em um buquê de rosas. E oferecer ao primeiro que aparecer. De carro importado. De vidro fumê. Nada de beijo. Amor é dar um tiro no ente querido se ele tentar correr.
Amor é o bife acebolado que a minha mulher fez para aquele pentelho comer. Filhinho de papai. Lá no cativeiro. Por mim ele morria seco. Mas sabe como é. Coração de mãe não gosta de ver ninguém sofrer.

Amor é o que passa na televisão. Bomba no Iraque. Discussão de reconstrução. Pois é. Só o amor constrói. Edifícios. Condomínios fechados. E bancos. O amor invade. O amor é também o nosso plano de ocupação.
Amor que liberta. Meu irmão. Amor que sobe. Desce o morro. Amor que toma a praça. Amor que de repente nos assalta. Sem explicação. Amor salvador. Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue. Meu filho. Não é amor.

(Extraído do livro “RASIF – Mar que Arrebenta”, de MARCELINO FREIRE, Editora Record, 2008)
P.S. Indicação de leitura: Felipe Marçal

9.6.10

Bolo de aniversário Clube do Bem

O blog Clube do Bem esta completando um ano de vida. E até o dia 30 de junho estaremos comemorando a certeza de que ser aquilo que se é, revela-se o único caminho de sermos felizes, ou um pouquinho menos infeliz.
A festa de aniversário terá bolo (Contos de Caio Fernando Abreu e Marcelino Freire), brigadeiros (Mostra fotográfica Horizontes do Bem) e cachorro-quente com suco de groselha (Textos enviados pelos sócios de carteirinha do Clube). Puxe sua cadeira e festeje com a gente!
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Bolo de aniversário

Aqueles Dois _ Caio Fernando Abreu

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.

Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.

Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.

II

Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.

Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.

Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.

III

Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.

Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.

Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.

Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.

Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.

IV

Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.

Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.

Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.

V

Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.

No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.

Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.

Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.

Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou.

Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.

Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos.

Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.

Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.

Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.