22.12.10

O protetor e a protegida


Estavam os dois lá, numa disputa de asas para saber quem ficaria com a guarda da Catarina. Anjo Ezequiel receberá uma missão invejável e irrecusável e partiu lamentando-se por não mais zelar a vida da senhorita. Mas antes de assumir a nova missão, teria outra que lhe valeria uma auréola: escolher um substituto a altura da protegida.
Anjo Gabriel foi para final sem etapas eliminatórias, nem mesmo testes psicotécnicos. A fama de bom anjo, aliado aos seus milhões de seguidores, o levaram a concorrer com anjo Rafael; novato no mundinho angelical, mas já conhecido como azarão da vez.
Arcanjo Miguel, antes de sair de férias, ficou responsável por ajudar Ezequiel na escolha, criando as tarefas que determinariam o vencedor.  E assim seria: dia após dia durante todo mês de dezembro Gabriel e Rafael usariam todas as suas armas para poder ficar ao lado de Catarina.
Ela, honrando seus 28 anos de trabalho duro como faxineira na Clínica Geriátrica Caminho da Luz, nem se deu conta da guerra santa que se formará lá em cima.
Morava sozinha numa casa de dois pisos, ladeada por duas janelas grandes, um sofá vermelho e um cachorro branco. Gostava de assistir televisão com as luzes apagadas e sempre antes de dormir ficava na sacadinha do quarto intercalando o olhar ora pra cima, ora pra baixo. O silêncio era quebrado pelo latido do cão branco e, as vezes, pelo apito da tostadeira de pães.
Ela não reclamava. A mão grande rachada por cloro era viciada nos cabelos curtos quase todo cinza. O único parente vivo era um irmão que morava longe mais viria para o almoço de Natal. Nada de amores, casamentos, filhos, batons, ou divagações.
Anjo Gabriel, na verdade, queria a guarda de Catarina, porque ouvira pelos corredores que a tal era muito bem vista pelos poderosos lá de cima e que também não lhe restavam muito anos de vida, o que lhe facilitaria o trabalho. E com mais essa no currículo ele estaria a poucos passos de realizar seu sonho e virar decoração para quarto de criança.
Os primeiro três dias de tarefas foram designados a Gabriel. Logo no primeiro o anjo pop star se estafou. Catarina chegou dez minutos mais cedo ao trabalho, cumprimentou a todos, cantarolou alguma canção dos Secos e Molhados e antes de iniciar a lavação dos banheiros, vestiu uma toquinha de papai Noel. Anjo Gabriel se recusou a entrar nos lavabos. Esperou pelo lado de fora. Tentou fazer palavras cruzadas com os velhinhos, derrubou dominós com sopro e até tentou cochilar. Catarina terminou o primeiro turno pontualmente às 12h e voltaria às 17h para mais uma jornada. Nesse meio tempo torradas, passeio pelo parque com o cão branco, uma passada no açougue, talvez um filme, talvez aparar as unhas do pé ou quem sabe lavar umas peças de roupas.
Na terceira noite, anjo Gabriel, jogado no sofá, atônito, não entendia de onde vinha todo aquele conformismo. Não passava por sua auréola o fato de uma mulher com 57 anos de idade, naquela situação parecer feliz, se sentir uma pessoa de sorte e a ele nada pedir.
No primeiro dia com anjo Rafael, Catarina, por onde passava na Clínica avistava confraternizações natalinas. Eram as garotas do escritório fazendo amigo-secreto, as enfermeiras do terceiro andar trocando bombons, familiares visitando os internos e ela ali. A cada nova cena, escorava em sua vassoura, dava um toque na sua touca de papai Noel bem no alto da cabeça e seguia. Quando avistava um ou outro interno afundado na sua solidão e sem ninguém pra ajeitar seus travesseiros, entrava quarto adentro, jogava meia dúzia de palavras, sacava um punhado de balas de goma do jaleco e seguia com seu balde escorado no antebraço, mas não sem antes alinhar os travesseiros.
Anjo Rafael, logo no final do segundo dia, se retirou e abdicou da vaga. Anjo Gabriel logo espalhou pelos quatro cantos que o novato se borrou todo.
Numa conversa com seu melhor amigo, Querubim Felipe, anjo Rafael confessou que Catarina não precisava de anjo de guarda. Querubim Felipe não entendeu a afirmação. E explicando-se ele disse:
Catarina, meu amigo, não é nem de perto santa. Vira e mexa solta um palavrão, tranca o cão branco na cozinha pra poder se masturbar em paz no sofá vermelho, “empresta” rolos de papel higiênico da Clínica para uso próprio; no entanto, ela aceita e acredita na vida que tem. Não que ela nunca tenha tentado nada diferente. Arriscou, sim. Vez que outra ainda vai a matine do forró, prestou alguns concursos públicos e até quase noivou. Mas não luta contra o que tem, tão pouco, vive no que gostaria de ter.  Arcanjo Miguel encostado na porta, escutou a explicação de Rafael ao amigo e se intrometendo na conversa disse:
- As vezes, o pessoal lá de baixo não precisa de anjos. Em alguns momentos eles estão infiltrados no meio deles, são anjos...diferentes, mas reais.
Querubim Felipe, confuso, indagou ao arcanjo o porquê então do anjo Gabriel ficar com a guarda da Catarina.
Respondendo ele disse:
- Muitas vezes entres os anjos daqui também tem o pessoal lá de baixo. Além disso, fico feliz em saber que anjo Gabriel terá muitos travesseiros para ajeitar.

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